Fico imaginando qual seria a reação dos consumidores se fosse descoberto que um piloto, que trabalha para a empresa XYZ (uma gigante multinacional), responsável por levar o CEO mundial da organização a uma viagem de negócios, fosse preso com 39 quilogramas de droga. Qual seria a reação dos clientes?
No mundo dos boicotes às marcas que são pegas na mentira ( sim, mentiras!), pois têm muito claramente definidas as suas missões, visões e valores - hoje em dia, até mesmo seus propósitos -, mas que permitem em sua cadeia de produção trabalho escravo, infantil, subornos, propinas, assédios de todos os tipos, qual seria a reação dos clientes?
Quando soube da notícia, logo pensei: o piloto foi preso? Quem entregou a “mercadoria” para ele? Para quem ele entregaria? Quais os clientes e fornecedores desta “mula qualificada”- como o chamou o Vice Presidente da República? Como foi toda essa logística para chegar até a bagagem de alguém que era parte da comitiva que conduziria ninguém menos que o presidente de um país, eleito democraticamente, através do voto em urna eletrônica aquela que ele mesmo dizia não confiar (todavia, ao que parece, a sua comitiva merecia mais desconfiança).
Depois, ouvi dizer que esta rotina já acontecia há anos - fiquei mais surpreso ainda -, quer dizer que não foi a única vez? Era um processo já estabilizado, testado, aprimorado ao longo do tempo, em outras palavras, já consolidado, maduro.
Então, lembrei-me dos meus estudos na academia, como professor de Ética, Conduta e Gestão do Capital Humano, e de minha experiência como executivo, em que vivenciei e ajudei a desvendar um caso bilionário de fraude numa gigante multinacional.
Eu me lembro de perguntar para as pessoas: escuta, mas por que você contabiliza isso assim? E a resposta era: “ué, faz anos que é assim”. E, eu retrucava: “mas você sabe que isto esta errado?” Alguns diziam que sim, que sabiam, mas que eram ordens vindas de cima. Outros, se quer sabiam, de tão mal qualificados para a função, não tinham ideia de que o que faziam era errado.
Veja que não é à toa que estatísticas mostram que a corrupção acontece em maior número nos cargos de gerentes e diretores, ou seja, na liderança.
É por isso que mecanismos de Compliance efetivos - quando não são aqueles criados apenas pra dizer que existem - sempre apresentam alguns pilares mestres, que eu entendo são quatro:
Vontade: ou o famoso “tone at the top”, se a alta liderança não quer de verdade, não adianta, não haverá um programa efetivo. Se você perceber que o (a) CEO da organização é só marketing pessoal, esquece! Não haverá efetividade e todo o resto é tão frágil quanto casca de ovo. E, em relação a este item, indico a leitura do livro Why So Many Incompetent Men Become Leaders? (and how to fix it) do professor e pesquisador Tomas Chamorro-Premuzic. O livro mostra dados assustadores sobre a qualidade das lideranças nas organizações e faz um alerta sobre o que chama atenção quando estes são contratados. É, no mínimo patético. Quero em breve fazer um texto sobre isto.
Aliás, no dia 15 de Maio de 2019 o jornal Valor Econômico trouxe a seguinte manchete: Número de CEOs demitidos por falta de ética atinge nível recorde. A notícia era sobre um estudo conduzido pela consultoria PWC. Ou seja, precisamos melhorar muito a qualidade da liderança, tema ao qual tenho me dedicado desde a publicação do meu segundo livro Reflexões e Filosofia Prática Sobre Liderança (2015) e depois na minha dissertação de mestrado (2018), também neste tema, com líderes das áreas de finanças e contabilidade.
O segundo elemento é Comunicação. Não adianta a liderança querer se ela não contar para a organização que ela quer, e quer de verdade, se ela contar que quer, mas na prática mostrar que não quer, não tenha dúvida que em pouco tempo o programa cai em completo descrédito. Lembro claramente de uma reunião onde apontava para a diretora de RH da empresa os 5 valores afixados na parede e ela não conseguia entender que o caso em discussão feria o 1º, o 3º e o 4º valores constantes do quadro, mas ela ainda insistia que era uma prática usual da empresa. Ora, que valores são esses que a prática é não aplicá-los?
O terceiro elemento são Ferramentas, a organização precisa de um ferramental eficiente de comunicação que chegue a todos. Desde ferramentas de treinamento, que esclareçam tudo que é ou não uma conduta antiética, de modo que ninguém possa alegar que não sabia, até um canal de denúncias e de apuração de investigação e da devida punição em casos onde se confirme a conduta indevida.
E, por último, o mais importante, a Cultura de Compliance, onde se possa ver que maus exemplos são punidos e os bons, reconhecidos. Inclusive, caso necessário, é essencial sair de negócios e desistir de projetos contaminados com corrupção. É impossível ter uma cultura de Compliance, onde a rádio peão sabe que o que está afixado nas paredes (principalmente valores) não é vivido junto a clientes e fornecedores, muito menos percebido na liderança internamente.
E, no caso da cocaína no avião? Será que a Força Área Brasileira não tem um mecanismo de Compliance? Ou, se tem, onde foi a falha? E, principalmente, o que foi feito para corrigir isto?
Dizem que aviação é igual banco, funciona na confiança. Se esta faltar, o negócio quebra. Daí fica a pergunta: se na comitiva do CEO do país foi possível transportar pelos ares drogas por um longo período, será que o Compliance alcança quem está no chão da fábrica no Brasil?
O caso nos mostra que não há organização imune a corrupção, que se faz necessária a intensificação dos mecanismos de controle, dos investimentos em educação e toda receita de bolo que já sabemos.
Seja uma empresa, uma entidade sem fins lucrativos, associação religiosa, militar ou qualquer outra. É preciso que os mecanismos de Compliance alcancem a todos. Esta é uma tarefa indelegável da liderança.
Quando eu era criança, meu vizinho ouvia uma música que dizia assim: “responsabilidade, ninguém quer aceitar, a possibilidade de alguém vir me culpar, disse Adão que a culpa foi dela, ela disse que a cobra enganou, a cobra escondeu-se no mato, parece que ninguém pecou.”
Mesmo que seja um ato isolado de um membro ou de um funcionário, a reputação da entidade, da empresa, da organização sai manchada. A falta de ética nunca é um problema só das maças podres, uma maça que até ontem era boa, pode ter mudado de ideia hoje, Compliance não é um evento é um processo diário.
Vale a pena ler também meu texto sobre Ética