Blog do Inédito

Estereótipos, democracia e liberdade de expressão
17/Dez/19autor: Emerson Dias
Estereótipos, democracia e liberdade de expressão

  

Recebi a manifestação de repúdio do Conselho Federal de Contabilidade, sobre uma esquete apresentada no programa Zorra Total da TV Globo em 7/12/2019.

Por conta da mensagem fui assistir a esquete, que confesso me arrancou gargalhadas, ri muito, primeiro pelo nome do prêmio “Nem fede nem cheira”, segundo pela interpretação do artista que - na minha visão - representava sim o estereótipo de muitos profissionais da contabilidade que convivi e convivo até hoje.

É bom dizer que há uma confusão entre estereótipo e preconceito. O estereótipo é necessário, foi utilizado primeiramente como forma de representação no cinema de pessoas do cotidiano. O termo estereótipo inclusive tem origem junto com a prensa móvel de Gutemberg antes do ano de 1.500. 

Os nossos vieses cognitivos inconscientes criam estereótipos na nossa cabeça a todo instante, por isso ao ver a esquete reconheci muita gente como aquele sujeito, não apenas da contabilidade, mas de várias profissões. Profissionais que estão lá todos os dias por anos a fio sem ganhar nada, como ele diz, com o chefe dizendo que o trabalho é ok. E pronto.

O problema não é que os estereótipos sejam mentiras, eles apenas não são a totalidade e, por isso tem que se tomar cuidado, porque facilmente são convertidos em preconceitos. Para esse texto não ficar muito longo, veja este vídeo que fiz há um ano sobre preconceito e estereótipos.

Lido com contabilidade há quase 30 anos, pois comecei minha carreira aos 15 anos de idade, na sede de um grande banco brasileiro no departamento de Contadoria Geral. Inclusive, por conta disto, fui para faculdade de Ciências Contábeis e me formei contador.

No último ano da faculdade, saí do banco, onde já tinha um cargo de chefe de serviço na área de balanços, para ser estagiário de uma multinacional na área contábil.

Isto porque eu vi ali a oportunidade de praticar inglês e faria sentido depois do tempo investido em cursos do idioma conciliando com as aulas da faculdade noturna e o trabalho diário, claro, se estendendo aos sábados e domingos com exercícios e práticas.

Deste trabalho, que não vingou, pois era um estágio e naquele ano o governo de São Paulo decidiu não investir em infraestrutura, fazendo com que as vagas efetivas na empresa não fossem mais possíveis. O dólar apresentava um overshooting, lia no jornal Gazeta Mercantil diariamente sobre a crise que o, então, presidente do Banco Central, Gustavo Franco, enfrentava para controlar a situação.

Depois de três meses desempregado, aguentando alguns comentários de que eu tinha feito loucura de sair do banco para ser estagiário e agora estava na rua, finalmente consegui uma vaga na contabilidade da Polaroid do Brasil pra fazer conciliação de contas, que durou uma semana, pois ao mesmo tempo o pessoal da Mannesmann me chamou para trabalhar em controladoria e eu achava mais sexy ser assistant controller.

Na Mannesmann, tive a oportunidade de ir para a Inglaterra e Alemanha e ver que o mundo era bem maior do que eu pensava. Naquele momento, a Vodafone estava em vias de comprar a divisão de celulares da empresa, e a divisão de engenharia e automotivo que ela não tinha interesse, poderia estar na mira da Siemens, noticia que vez por outra chegava ao Brasil. Mas lá na Europa a coisa estava na mídia todos os dias.

No dia em que voltei ao Brasil vi um anúncio no jornal Gazeta Mercantil precisando de um USGAAP Accounting Consultant, guardo o recorte do jornal até hoje comigo, já são 19 anos. Tem até a mancha do clipe enferrujado pelo tempo.

 Não tive dúvidas, me candidatei. Durante o processo, na primeira entrevista na empresa, foi que descobri que a empresa era a Siemens. Na recepção, encontrei o auditor que nos auditava na Mannesmann, o qual sem saber de nada, me apresentou ao controller da empresa como um expert em USGAAP da Mannesmann. 

Foi mesmo uma coincidência, nós dois esperávamos na recepção da empresa pela autorização de entrada. Eu, um candidato a emprego, e ele, o gerente de auditoria da empresa, que havia esquecido o crachá de acesso.

E ele não poderia ter dito algo mais apropriado ao meu futuro entrevistador, pensei comigo, essa vaga é minha!

Não foi, me acharam jovem demais para o cargo, ah esses contadores, mas abriram uma segunda vaga porque gostaram de mim. Assim, entrei na Siemens como um analista contábil, e quase dez anos depois sai de lá como o gerente geral da contabilidade de todo o grupo e fui para o Carrefour como diretor executivo de contabilidade e outras áreas.

Aliás, essa história do anúncio do jornal virou uma palestra sobre confiança, 18 anos depois, quando voltei a sede da Michael Page, agora não como candidato, mas como um ex executivo, para contar, por meio de uma história real a importância do trabalho que um headhunter tem ao ajudar pessoas se movimentarem em suas carreiras.

Depois do Carrefour, ainda fui sênior controller na área de concessão de rodovias de uma joint venture ítalo-brasileira. 

Em 2013, ao lançar meu primeiro livro e minha marca “o inédito viável”, decidi caminhar para a consultoria de carreira, escrever livros, fazer palestras, cursos e, também, virar professor universitário dos conteúdos de Ética e Compliance, Liderança, Gestão de Pessoas e Carreira, Finanças Comportamentais e outras, e para não esquecer do passado, também ministro aulas de Contabilidade.

A propósito, na primeira aula do semestre do curso de graduação em Contabilidade, eu transmito dois vídeos, ambos com personagens do saudoso Monty Phyton. Grupo de humor sem limites que fez história na televisão britânica e mundial.

Um primeiro, que é uma grandiosa aula de contabilidade, ensina o “Bê a Bá” de forma cômica e a grande maioria dos alunos adora o vídeo, detalhe, o vídeo é de 1978. O segundo, que mostra um contador de 45 anos em crise de carreira querendo se transformar em domador de leões. Entre alguns esculachos e sarcasmos, basicamente o personagem descobre que seus atributos (entediante, chato, limitado, sem imaginação, tímido, sem iniciativa, sem personalidade persuasiva, sem senso de humor) são perfeitamente adequados à carreira atual e não, à de domador de leões, como ele queria. 

Em um momento, o consultor afirma que estes atributos, que seriam em outras profissões considerados um ponto negativo, na contabilidade - pelo contrário - são bastante positivos. Ou seja, contabilidade, em sua visão, é a única profissão onde a criatividade é defeito.

Uso esse vídeo para mostrar aos alunos que cabe a nós profissionais da contabilidade mostrar nosso valor e que somos mais, podemos ir além do “tá na norma”, “sempre foi assim”, “isso não pode”, “aí já não posso ajudar porque está fora do meu escopo”. E claro, fugir o estereótipo!

Eu escrevi sobre isso na minha coluna Lord Excrachá (ex crachá que escracha) que escrevo na Revista da ANEFAC (Associação Nacional de Executivos de Finanças Administração e Contabilidade). Uma coluna que usa do humor para trazer reflexões sempre importantes sobre o nosso comportamento.

Escrevi falando sobre Contabilidade e Criatividade, por ocasião do 22º prêmio Troféu Transparência, prêmio que há mais de 20 anos a ANEFAC entrega as empresas que se destacam por suas demonstrações financeiras.

Quando se fala em contabilidade criativa, qualquer auditor tem calafrios. Mas criatividade é uma das competências mais importantes para qualquer profissional, por que não deveria ser para os contadores também?

Na ANEFAC sou voluntário, trabalho como Vice Presidente de Capital Humano, cargo criado para tratar as questões de liderança, de gente e de carreira. Promovo reuniões ao longo do ano, na maioria das vezes gratuitas, estendidas inclusive aos não associados e, em 2019, o tema que mais falamos foi carreira. 

Afinal, uma das grandes discussões do momento é o futuro do emprego e, para quem já viu o trabalho original de 2013 dos pesquisadores Carl Benedikt Frey e Michael Osborne da Oxford Martin School, intitulado The Future of employment: how susceptible are Jobs to computerisation? sabe que contadores serão um dos grandes afetados e que seu trabalho precisa ser revisto.

E aí, o profissional “Nem fede nem cheira” realmente tem um problema. Aliás, uma das grandes agendas que milito é a necessidade de networking. Como lido com consultoria de carreira, não é raro o contador que perdeu o emprego vir me procurar para saber o que ele precisa fazer para se recolocar ou se reinventar. E quando falamos de networking, geralmente o seu é bastante pobre em quantidade e principalmente em qualidade. 

Digo quantidade porque quais são os contadores ou profissionais da contabilidade que frequentam eventos? A grande maioria está enfurnada em fechamentos contábeis que duram dias. E, nestes dias, a pessoa nem tem vida. Que dirá sair uma manhã, uma tarde ou uma noite para ir a um evento e fazer networking? Foram anos assim e agora como mudar?

No muito, frequentam eventos apenas de contadores, o que é bom, claro, estar no meio dos seus é muito bom, mas não se pode restringir a isso. É preciso investir também em qualidade, que tem a ver com diversidade de temas, desde 2017 na ANEFAC promovemos uma agenda que inclui temas como: carreira, transição, liderança, diversidade e inclusão, conflitos geracionais, compliance, revolução digital, inteligência emocional, inteligência artificial, redes sociais, saúde e qualidade de vida, enfim, procuramos tratar além dos temas técnicos os temas que vão além, que impactam as pessoas e suas carreiras.

Agora, experimente chamar o pessoal da contabilidade para fazer um curso de liderança, de gestão de pessoas? De criatividade então é quase pedir para ser apedrejado. Muitos preferem fazer o DE PARA do novo sistema ou inventar uma nova planilha de Excel. Que é importante claro, mas não só.

O contador por conta da norma NBG PG 12 precisa completar 40 horas anuais de treinamentos, isso é o que pede a educação continuada, que é uma iniciativa louvável para fazer o profissional estar sempre atualizado. Até aí, está ótimo! Eu participei das reuniões da comissão que julga os processos no Conselho de São Paulo, aprendi muito, mas por que precisa ser 40 horas de treinamento técnico? 

Porque não pode ter mínimas 5 horas anuais por exemplo de softskills? As famosas habilidades do futuro sequer são tratadas na educação continuada. E será que elas não são necessárias já nos dias de hoje?

Fiz mestrado em Administração e minha dissertação foi em liderança, fiz a pesquisa com profissionais da contabilidade e finanças, tentando entender os modelos de liderança presentes neste grupo de profissionais. 

Advinha?! A maioria são líderes focados em contingências e tarefas, o que não é novidade, pois era possível ter esse feeling antes da pesquisa. Todavia, este talvez seja o motivo de poucos contadores chegarem a CFOs, CEOs, etc., talvez porque lhes faltem habilidades com pessoas, com pares, networking, comunicação, marketing pessoal e por aí vai.

E então, se o Conselho Federal repudia o estereótipo de um contador que sobe ao palco para receber seu primeiro prêmio na vida, e usa mal a palavra ao agradecer o tal prêmio da esquete, talvez ficasse surpreso ao ver muitos contadores, na vida real, se quer terem coragem de subir num palco para falar o que fazem no dia a dia dentro de suas empresas.

Aliás, num curso de Controller de uma reputada instituição de ensino na área contábil, dei aulas de Comunicação e expressão, e o feedback foi incrível, esta registrado na pesquisa de qualidade do curso. Uso as técnicas que aprendi em rádio e TV e ajudo contadores e controllers se destravarem e melhorarem sua oratória, seus slides, sua presença de palco.

E por que isso? Porque habilidade de comunicação é uma demanda para qualquer profissional, e para um contador mais ainda, como ele vai apresentar os resultados da empresa sem técnica de apresentação, sem expressão? Não vai né? Porque vai ser uma chatice sem fim!

E geralmente ele (a) não é o convidado para falar, geralmente cabe a outro profissional mais dinâmico fazer isso. E, assim, perde-se a oportunidade de crescer na carreira, neste mundo "imidiático".

Olha aí a oportunidade de desenvolvimento! Isso deveria esta também na educação continuada.

Ao mostrar a esquete da Globo para algumas pessoas, muitas das quais meus alunos, muitos me disseram: “Nossa professor é igualzinho o contador da minha empresa”.

O humor muitas vezes tem esse papel, dar alguns recados que, de forma séria, não seriam dados, é um desrespeito sadio. Esse era o papel do bobo da corte, dizer verdades para o rei que os súditos não tinham coragem de dizer, até porque o rei queria sempre ouvir o que ele queria não necessariamente a verdade. 

Ouvir verdades muitas vezes incomoda, mas quando feita com humor e se devidamente captada a mensagem subliminar, nos faz crescer. Quantos de nós contadores não temos uma carreira de fato que nem fede nem cheira?

Quantos de nós de fato nunca ganhamos nada, não pisamos na bola, mas também não surpreendemos ninguém?

É legítimo em uma democracia que um conselho de classe repudie uma esquete humorística que ele acredita passou dos limites. Assim como é legítima a liberdade de expressão de um artista passar uma mensagem subliminar (ou nem tanto). 

Assim, como é legítimo do ser humano formar estereótipos, o problema é quando os estereótipos se transformam em preconceitos por entenderem que todos são assim. O que definitivamente não é o caso da classe contábil.

Mas combater preconceitos é luta diária e só se dá por meio da educação. Isso não ocorrerá por repudiar a liberdade de expressão sem compreender as entrelinhas do humor, isso só acontecerá se houver ações de valorização da profissão junto a população, e essa valorização pode-se dar com uso da criatividade e do humor inclusive.

Pense uma campanha bem humorada, com uso de esquetes em rede nacional valorizando a profissão do contador com selo e apoio do Conselho Federal de Contabilidade e todo os CRCs regionais?

Foi assim que surgiu meu personagem Lord Excrachá na Revista da ANEFAC, usar o humor para valorizar e refletir.

Esse deveria ser o foco, foi sempre assim que trabalhei dentro das empresas por onde passei e fiz minha carreira, “um contador meio diferente” me diziam em feedbacks e hoje como professor e consultor de carreira tento ajudar meus colegas de profissão a desenvolverem outras habilidades tão importantes, pois a parte técnica o Conselho já desempenha muito bem.

Este texto foi escrito por mim e disponibilizado primeiro na rede social Linkedin, onde inclusive contém mais imagens que aqui não foram possíveis incluir, acesse por aqui

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